Lisboa
- O procurador Rosário Teixeira quis indiciar um enteado de Manuel
Vicente, vice -presidente de Angola, pela prática dos crimes de fraude
fiscal qualificada, branqueamento de capitais e falsificação. Mas Angola
não obedeceu à carta rogatória portuguesa.
Revista: SÁBADO in http://www.club-k.net
PGR de Angola não obedeceu à carta rogatória portuguesa
O
Ministério Público (MP) tentou também cobrar à empresa do suspeito
quase 700 mil euros em impostos em atraso, mas depois recuou. O angolano
não voltou a entrar em Portugal com medo de ser detido até o MP decidir
arquivar o caso mediante o pagamento de uma injunção de 100 mil euros.
Entretanto, já a Autoridade Tributária (AT) tinha devolvido à empresa
suspeita 99.628,01 euros em créditos fiscais.
Em exclusivo, a
SÁBADO divulga agora todos os pormenores do inquérito que visou a
compra e venda de acções do banco BiG detidas por Manuel Vicente. Uma
investigação judicial no mínimo rocambolesca. Tudo começou, em termos
formais, quando o Departamento Central de Investigação e Acção Penal
(DCIAP) abriu o inquérito -crime nº34 no início de 2012, após receber
várias informações confidenciais da Polícia Judiciária (PJ) e da
Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) sobre financiamentos
considerados suspeitos. O alvo era um negócio do então presidente da
Sonangol, Manuel Vicente, e de um dos enteados, Edmilson de Jesus
Martins – filho de uma empregada de escritório (Marinella de Jesus) com
quem ele casou em 1996.
A Judiciária
havia detectado facturas alegadamente não declaradas ao fisco pela
empresa portuguesa controlada por Edmilson e a CMVM relatara ao MP que
durante uma inspecção, feita em 2011 pelo Banco de Portugal (BdP) à
sucursal nacional do Banque Privée Edmond de Rothschild Europe (BPERE),
tinham sido encontrados financiamentos cruzados de milhões de euros –
com origem no BPERE e no Banco Privado Atlântico (BPA) Europa – à
empresa Edimo para comprar a participação de 4,99 por cento de acções
que Vicente tinha no banco BiG.
O poderoso angolano
Vicente não era
apenas mais um gestor angolano, visto que já tinha ligações às elites
políticas e financeiras portuguesas. Por exemplo, representava os
interesses da Sonangol como vogal do Conselho Geral e de Supervisão do
Millennium bcp e era também vogal no Conselho de Administração da Galp
Energia. Em Angola, pertencia ao Bureau Político do MPLA, o partido do
poder, integrava a Fundação José Eduardo dos Santos, presidia à Unitel
(a operadora de telecomunicações controlada por Isabel dos Santos) e era
vice-presidente do BAI, o Banco Angolano de Investimento ligado ao
grupo Carlyle.
Estava também
prestes a lançar -se de vez na política, já que tinha sido convidado a
integrar o governo de Angola, o que viria a ocorrer primeiro como
ministro de Estado e da Coordenação Económica e, depois, como
vice-presidente. A mulher passaria a ter discretamente aulas de
protocolo de Estado e Vicente tornara-se já um homem rico, mas que
parecia não querer que se soubesse o dinheiro que realmente tinha.
"Manuel
Domingos Vicente tem vastíssimos meios de fortuna, auferindo rendimentos
anuais gerados pela sua actividade profissional superiores a 10 milhões
de dólares e possuindo património pessoal estimado superior a 75
milhões de euros. Deste modo, o recurso a capitais alheios no valor de
7,9 milhões de euros – apenas com o propósito (declarado) de alterar a
titularidade da participação no BiG – parece carecer de qualquer
racionalidade económica", lê-se no relatório da CMVM, que considerou
estranhas as operações bancárias dos dois créditos e a constituição de
uma garantia (contrato de penhor), além dos custos dos juros e comissões
associados aos empréstimos.
Necessário ou
não, o intrincado esquema financeiro foi usado para fazer transitar as
acções do banco BiG da posse de Manuel Vicente para a empresa portuguesa
de Edmilson Martins. De resto, o enteado, nascido a 21 de Abril de
1980, em Luanda, era de há muito um dos homens de maior confiança de
Vicente. O gestor criara-o como filho e pagara-lhe os estudos em Angola e
em Inglaterra, no Bellerbys College Mayfield (1996 -98), na Southampton
Business School da Universidade de Southampton (licenciatura em Gestão
de Empresas entre 1998 e 2003) e no Regents College London (MBA em
Business Administration, 2003-05). Quando Edmilson Martins regressou em
2006 a Luanda, Vicente empregou-o como colaborador em empresas do grupo
Sonangol e lançou-o no mundo dos negócios privados, sobretudo no
imobiliário.
Na ficha de
cliente do banco Edmond Rothschild, que a 9 de Dezembro de 2009
autorizou um financiamento de quase 8 milhões de euros, consta que foi o
próprio chairman do BPA Europa, o luso -angolano Carlos Silva, que teve
uma intervenção directa nos financiamentos bancários ao apresentar
Edmilson e Vicente ao BPERE.
É também este
documento que diz como estava dividido o património pessoal do actual
vice-presidente de Angola: mais de 50 milhões de euros em bens
mobiliários; outros 25 milhões de euros em imobiliário; e mais de 10
milhões de dólares/ano recebidos para gerir empresas ligadas ao Estado
angolano ou a familiares do Presidente da República, José Eduardo dos
Santos.
O contrato forjado
Segundo
a documentação que consta no processo-crime, que a SÁBADO foi
autorizada a consultar, a operação de financiamento do Rothschild
começou a ser montada em Fevereiro de 2010. Como as acções de Vicente no
BiG estavam então avaliadas em quase 11 milhões de euros, o restante
financiamento à Edimo e a Edmilson Martins veio do BPA Europa, um banco
controlado por angolanos. No entanto, o BPA não financiou apenas o
montante que faltava do primeiro crédito contraído no banco Rothschild –
cerca de 3 milhões de euros –, mas um total de 14,7 milhões. O dinheiro
foi depois transferido do BPA para o Rothschild, mas dividido em duas
tranches e com dois destinos: 3 milhões creditados na conta da Edimo e
11,7 milhões entraram na conta de Manuel Vicente. Esta última funcionou
como a garantia do financiamento total à Edimo, ou seja, Vicente foi ao
mesmo tempo vendedor e avalista do enteado.
O negócio
tornou-se ainda mais complexo quando os financiamentos bancários foram
pagos. Em Outubro de 2011, a Edimo terminou de amortizar o empréstimo ao
Rothschild Europe com 5,55 milhões de euros que vieram de uma conta da
empresa aberta no BPA. No entanto, o dinheiro não seguiu directamente
para o Rothschild e numa só tranche. Edmilson Martins terá dado no mesmo
dia duas instruções de transferências – 5,445 milhões e 100 mil euros. O
total do dinheiro passou pelo Dexia Banque, no Luxemburgo, antes de ser
creditado na conta da Edimo no BPERE, em Portugal. Para o MP, a
triangulação serviu, mais uma vez, um propósito: dissimular a origem dos
fundos (Angola) e diminuir as exigências legais de justificação do
dinheiro.
Meses antes, em
Fevereiro de 2011, já tinha sido feita a primeira amortização do
financiamento do Rothschild: cerca de 2,4 milhões de euros. Para isso,
foram usadas duas transferências realizadas via BPA – 750 mil dólares
(591 mil euros à data de 23 de Agosto de 2010) e 2,5 milhões de dólares
(1,811 milhões de euros em 27 de Outubro de 2010). Desta vez, o dinheiro
veio da Persiger, Gestão de Investimentos, uma empresa angolana
controlada também por Edmilson Martins. Os pagamentos à Edimo foram
justificados com um contrato de consultadoria imobiliária, em Angola.
O caso
tornou-se ainda mais suspeito quando o MP descobriu que o contrato de
assessoria era de 20 de Março de 2008, isto quando a Edimo só tinha sido
constituída mais de um ano e meio depois, a 7 de Setembro de 2009. No
início, a empresa não tinha qualquer funcionário e a sede de Lisboa
ficou registada no escritório de advogados Leite Campos, Soutelinho
& Associados (o fiscalista Diogo Leite de Campos foi um dos
professores de Rosário Teixeira na Faculdade de Direito da Universidade
Católica). Além disso, no contrato com a Persiger, a Edimo aparecia com
um Número de Identificação Fiscal (NIF) que não era o verdadeiro. A
conclusão preliminar do MP foi a seguinte: a origem do dinheiro era cada
vez mais suspeita e as facturas tinham sido falsificadas.
A carta rogatória
Como
medida de prevenção, logo no início do processo, o MP fez buscas à
Edimo, suspendeu as operações das contas portuguesas da empresa e
manteve arrestadas as referidas acções do BiG. O procurador Rosário
Teixeira mandou também a Autoridade Tributária (AT) fazer o cálculo do
alegado acréscimo de IRC, derrama e juros a pagar pela Edimo. As contas
da AT apontavam, conforme informação de 30 de Abril de 2012, para um
total de 688.339,11 euros de impostos atrasados. Este valor nunca viria a
ser pago, porque a Persiger acabaria por demonstrar ao MP que o
dinheiro era de Edmilson Martins. E a Edimo fez, entretanto, várias
correcções nas declarações de impostos de 2010 e 2011. Depois disso, a
13 de Fevereiro de 2013, o inspector tributário Pedro Cardigos (um dos
elementos da Operação Marquês) informou Rosário Teixeira de que as
correcções não tinham alterado de forma significativa "os resultados
fiscais globais" da empresa. No entanto, a Edimo já tinha recebido
99.628,01 euros de créditos de retenções na fonte e pagamentos por conta
que não tinham sido inicialmente considerados pela AT. Resumindo:
durante o processo, a empresa recebeu do Estado português um valor quase
idêntico aos 100 mil euros que viriam a ser decretados como injunção
para o MP arquivar o processo em Novembro de 2013.
Antes disso, o
procurador Rosário Teixeira ainda tentou que Edmilson Martins fosse
constituído arguido. Depois de meses a insistir que o angolano suspeito
viesse a Portugal para ser ouvido no processo, o MP optou por mandar uma
carta rogatória para Angola. O advogado da Edimo, Paulo Blanco, sugeriu
também esta diligência, salientando que se tratava de um cidadão
angolano, cuja vinda a Portugal implicava a necessidade de visto e de
"elevados custos e riscos". Na realidade, Edmilson Martins tinha medo de
ser detido.
O advogado
Blanco sugeriu também que a carta rogatória seguisse de Lisboa via DHL
para ser mais rapidamente respondida. O DCIAP tentou fazê-lo, mas foi
informado pelos serviços de apoio da PGR, Joana Marques Vidal, que não
havia fundo de maneio para pagar o custo de envio – 84,83 euros. A carta
lá foi remetida ao abrigo de um acordo do MP com os CTT.
No documento
judicial que consta no processo, Rosário Teixeira solicitou à PGR de
Angola que interrogasse como arguido o enteado do vice-presidente de
Angola, mas isso nunca aconteceu: Edmilson Martins foi ouvido apenas
como testemunha e as respostas foram mandadas ao MP português quase nove
meses depois. Tudo acabou passado pouco tempo, pois Rosário Teixeira
nem sequer acusou Edmilson do crime de falsificação. Os argumentos:
tratava-se de uma "bagatela penal", o crime tinha sido praticado a
"conselho de consultores externos" e os investigadores não tinham
conseguido arranjar outras assinaturas do angolano para saber se era
verdadeira aquela que estava no contrato de assessoria forjado. O juiz
de instrução Carlos Alexandre concordou e, em 2015, a Edimo desapareceu –
fundiu-se com a Oceangest,
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