Escrito por
Antonio Monteiro, Expresso das Ilhas
O
presidente do partido União para a Mudança foi ministro da Comunicação
Social nos dois últimos governos constitucionais da Guiné-Bissau.
Durante a sua estada na Praia, na passada semana, Agnelo Regalla falou
com o Expresso das Ilhas sobre a crise que se vive actualmente no seu
país. Regalla imputa ao Presidente José Mário Vaz a maior cota parte da
responsabilidade na crise político-institucional guineense por
desrespeitar o princípio da separação de poderes e querer ser
simultaneamente presidente e chefe do governo.
Como está a situação política na Guiné-Bissau?
O país vive actualmente uma situação de
profunda crise. Uma crise político-institucional que foi montada com
todas as peças e que retirou do poder o partido que ganhou as eleições
com maioria absoluta, o PAIGC [Abril de 2014]. Portanto, daí a primeira
situação de inconstitucionalidade. Assistimos praticamente a um golpe de
Estado institucional, na medida em que, ao invés de fazer retornar ao
poder o partido que ganhou as eleições, o presidente da república [José
Mário Vaz] inventou uma outra fórmula indigitando para o cargo de
primeiro-ministro pessoas que nada têm a ver com a vontade do partido
vencedor, o PAIGC. A crise foi-se aprofundando com o bloqueio do
Parlamento. A democracia tem os seus mecanismos e quando se envereda
pela inconstitucionalidade, esses mecanismos por si só acabam por criar
situações de bloqueio. Neste momento, o Parlamento da Guiné-Bissau não
funciona na medida em que os órgãos desse Parlamento surgem no contexto
das maiorias aferidas no pós-eleições dos resultados que são homologados
pelo Supremo Tribunal de Justiça. E é em função disso que se compõem os
órgãos e o partido que ganhou as eleições tem a maioria nos órgãos e
por isso conseguiram bloquear essa situação aprofundando a crise.
Procurou-se uma solução, de resto solicitada pela presidente da
república, de uma intermediação por parte da CEDEAO que apontou o
presidente da república da Guiné-Conacri Alpha Condé para mediar a
crise. Houve um acordo que foi assinado em Conacri, chegou-se a um
consenso relativamente ao nome da pessoa que seria indigitada para o
cargo de primeiro-ministro, mas logo de seguida o presidente José Mário
Vaz recuou em relação àquilo que foi definido aquando do acordo de
Conacri. Ele alega que não houve consenso, quando efectivamente houve
consenso e o nome do consenso não surge no próprio acordo meramente por
uma questão de respeito pela soberania da Guiné-Bissau. O Presidente
Alpha Condé considerou que deveria ser o presidente da República da
Guiné-Bissau a anunciar esse nome de consenso, daí ter retirado o nome
do comunicado final do encontro de Conacri.
Desde a implantação do
multipartidarismo, em 1994, na Guiné-Bissau nenhum governo cumpriu o seu
mandato até ao fim. O que garante que o governo que sair das próximas
eleições legislativas irá até ao fim?
Na verdade, na Guiné-Bissau nem os
governos nem os presidentes eleitos cumprem os seus mandatos até ao fim.
Isso tem sido uma constante na Guiné-Bissau; não por culpa da
Constituição, mas por culpa dos homens, por culpa muitas vezes da
arrogância, da ganância, da falta de vontade de fazer política para
resolver os problemas da Guiné-Bissau. O que se constata é que há gente
que só sabe fazer política estando no poder. Não assumem que em
democracia estar na oposição é tão importante como estar no poder.
Aliás, neste quadro último todos os partidos com assento parlamentar
tinham sido convidados a participar num governo de inclusão. Pura e
simplesmente houve interesses que se sobrepuseram às regras democráticas
e à vontade popular e que provocou esta situação de crise. Mas não
podemos cair na ideia do fatalismo histórico de que porque isso
aconteceu até agora, continuará a acontecer. A nossa democracia é ainda
jovem, embora tenhamos uma classe política um pouco frágil em certos
aspectos. Como gostamos de dizer na União para a Mudança, democracia é
uma questão de cultura, não é uma questão de mera vontade. As pessoas
têm que ter essa cultura, têm que assumir os valores que conformam a
democracia para aceitarem a circunstância de que hoje pode-se estar no
poder e amanhã pode-se não estar. Portanto, é a previsão da
possibilidade das alternâncias que são sempre positivas no quadro
democrático.
O representante da União
Europeia na Guiné-Bissau disse em 2016 que o problema da Guiné-Bissau
não está na Constituição ou no regime, e nem na articulação dos poderes,
mas na forma como os titulares de cargos públicos exercem os seus
mandatos. Concorda?
Nós estamos absolutamente de acordo, na
medida em que o problema é dos homens e da forma como se exerce o poder
na Guiné-Bissau. Nós temos uma Constituição semi-presidencialista.
Muitos presidentes dos países da África Ocidental põem em causa o nosso
sistema. Nós pensamos que se esse sistema vingar, eles verão talvez o
sistema presidencialista posto em causa nos seus próprios países.
Portanto, apontam a Constituição como o mal de todos os males que tem
levado à instabilidade na Guiné-Bissau. Nós refutamos essa ideia: o
semi-presidencialismo funciona em Portugal; funciona em Cabo Verde e por
que razão não haveria de funcionar na Guiné-Bissau ou noutro país
qualquer da África Ocidental. Portanto, o problema da Guiné-Bissau é uma
questão meramente de respeito das regras democráticas e do respeito da
Constituição da República. Quando se pretende ultrapassar os poderes que
a nossa Constituição confere a cada órgão, é aí que os problemas
surgem. Às vezes, a ganância do poder, outras vezes a forma arrogante
como abordamos as questões do poder, muitas vezes as questões de se
tentar acaparar do poder para se servir e não para servir como deveria
ser, são esses os elementos que, de facto, trazem a instabilidade
governativa no nosso país. Penso que basta olhar para os índices de
corrupção que se verifica na Guiné-Bissau, e vemos que as pessoas,
muitas vezes, vão para o poder mais para se servir a si próprios do que
para fazer o papel de servidor da coisa pública.
Por que essas situações ocorrem
justamente em países onde há o primado da política sobre a economia,
onde os parcos recursos estão concentrados nas mãos do Estado?
É evidente que nestas circunstâncias
actuais, dificilmente a economia poderá evoluir, mesmo que se diga e que
se façam contas que haverá um crescimento, já que crescimento não
significa desenvolvimento do país. Pode crescer, há factores que quanto
menos desenvolvidos estiverem, maior poderá ser o seu índice de
crescimento, mas a grande verdade é que, com a instabilidade política,
dificilmente haverá investimentos, e não havendo investimentos,
dificilmente poderemos almejar o desenvolvimento. A Guiné-Bissau teve um
momento de arranque, porque foi constituído um governo de inclusão, com
a participação de praticamente todos os partidos políticos. O partido
vencedor das eleições entendeu que deveríamos fazer uma frente comum
para poder levar o país à estabilidade e criar as condições básicas do
desenvolvimento. Isso conduziu-nos à elaboração de um programa
estratégico e operacional que se chamou Terra Ranka [2014] com
a participação dos partidos políticos com ou sem assento parlamentar e
com a participação da sociedade civil. Em 2015 esse programa esteve na
base da Mesa Redonda de Bruxelas, em que a Guiné-Bissau ia à procura de
financiamentos, de investimentos e de apoios dos seus parceiros de
desenvolvimento. A Guiné-Bissau ia à procura de cerca 500 milhões de
dólares, e saiu com promessas na ordem dos 1,5 bilhões de dólares. Isso
sem que outros países como os Estados Unidos, o Japão, Coreia do Sul e a
China se tivessem pronunciado, o que fazia antever que poderíamos ter
atingido até os dois bilhões de dólares. Num país estável, num país sem
guerra, num país geograficamente pequeno, esse montante iria ter um
impacto extremamente importante no seu processo de desenvolvimento. Iria
servir sobretudo para os aspectos da infraestruturação, para os
aspectos que têm a ver com a necessidade da estabilidade, por um lado, a
reforma do sector da defesa e segurança, por outro lado, a reforma do
sector da justiça por forma a termos uma justiça mais justa, uma justiça
que combatesse a impunidade vigente no país. Portanto, seria um
dinheiro limpo aplicado no processo de desenvolvimento do país. Esta
crise deitou por terra todo o esforço que vinha sendo desenvolvido com
apoio da comunidade internacional.
Qual é o papel do actual presidente da república na crise que a Guiné-Bissau atravessa?
Eu penso que o Presidente da República
José Mário Vaz tem a maior cota de responsabilidade nesta crise que
estamos a viver. Nós [União para a Mudança] pudemos transmitir-lhe isso,
mas o nosso partido, enquanto partido, assumiu sempre o reconhecimento
da legitimidade do PR, na medida em que ele foi eleito nas urnas e é
resultante da vontade popular. O que nós não admitimos é que o PR que
exige o reconhecimento da sua legitimidade, retire a legitimidade aos
outros que também foram sufragados nas urnas pelo povo da Guiné-Bissau.
Quando o presidente diz que ele não se entende com o primeiro-ministro
[então Domingos Simões Pereira] quando coloca razões pessoais num quadro
governativo, aí é extremamente grave, porque a Constituição é claro, o
presidente da república tem as suas competências prerrogativas, o
primeiro-ministro e o governo têm as suas competências claramente
definidas. Temos que aprender a respeitar o princípio da separação de
poderes. Mas quando o PR tem vontade de transcender as suas
competências, quando ele presente ser presidente e simultaneamente chefe
do governo, o que não está previsto constitucionalmente, está a cometar
um atentado contra a própria democracia.
O trágico fim do presidente Nino Vieira não serviu de alerta aos seus sucessores no desempenho do cargo?
O nosso problema é que as pessoas quando
chegam ao poder sofrem de uma súbita amnésia. Esquecem-se do que se
passou, não só dos acontecimentos recentes, quanto mais dos
acontecimentos longínquos. Eu tenho a impressão de que as pessoas não
aprendem com os acontecimentos negativos que têm marcado a história da
Guiné-Bissau. E isso é, de facto, preocupante. Nós pensamos que o actual
presidente da república não é um político, mas um homem de negócios que
se vê no exercício do seu cargo como um empresário que está a gerir a
sua própria empresa. Um pouco na linha do quero, posso e mando. Ele não
entende que há regras que conformam a democracia e que enformam o jogo
democrático. No dia em que ele poder entender isso, acho que poderá
exercer convenientemente as suas funções, embora já lhe falte muito
pouco tempo. Daqui a um ano e meio o povo julgará nas urnas o seu
mandato e por toda esta crise que durou praticamente toda uma
legislatura.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 819 de 09 de Agosto de 2017
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