Por favor leiam.
A justiça em Portugal é “mais dura” para os negros
Um
em cada 73 cidadãos dos PALOP está preso. É dez vezes mais do que a
proporção que existe para os portugueses. Magistrados e outros agentes
do sistema judicial reconhecem que há duas justiças, uma para negros e
outra para brancos. Esta é a primeira reportagem da série Racismo à
Portuguesa
Há
uma marca no rosto de Diogo do tempo em que ele esteve na prisão. Livre
há apenas uns meses, prefere não explicá-la. Com voz pausada, Diogo
lembra a vida que o conduziu para trás das grades durante três anos e
seis meses, justamente numa altura em que até tinha começado a trabalhar
e em que não cometia crimes. Cumpriu a pena praticamente até ao fim,
mas saiu do Estabelecimento Prisional de Leiria sem perspectivas.
Encontramo-nos
na estação de comboios na Amadora de onde todos os dias segue para
Lisboa. Passámos já pelos grandes outdoors da autarquia que anunciam um
sistema de videovigilância. Todas as pessoas que no anúncio aparecem a
vigiar são brancas.
Sentado
num banco de jardim entre prédios, Diogo conta que já conseguiu um
trabalho mas que é precário. E conseguiu-o por causa de uma ópera onde
participou como recluso, apresentada na Fundação Calouste Gulbenkian, em
Lisboa.
Racismo à Portuguesa
Racismo à Portuguesa
Apesar
de ter nascido em Portugal, não é português. É cabo-verdiano no
passaporte, sem nunca ter ido a Cabo Verde. Como foi condenado a uma
pena superior a três anos, está impedido de pedir a nacionalidade
portuguesa.
Sempre
viveu com autorização de residência permanente. Quando saiu da cadeia
em Setembro, ficou em situação ilegal. O Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras (SEF) cancelou a sua residência. “Nasci cá. Já cumpri a minha
pena, já fiz porcaria, mas já paguei. Estou a trabalhar. Exigem mais
porquê? Se não tiver trabalho o que faço?” Tem a sensação de que, ao
encurrala-lo assim, o sistema pressiona-o para que vá de novo para a
cadeia.
Diogo
foi um dos jovens dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
(PALOP) que engrossou as estatísticas prisionais. Um em cada 73 cidadãos
dos PALOP com mais de 16 anos em Portugal está preso. É uma proporção
dez vezes maior do que a que existe para os cidadãos portugueses — onde
um em cada 736 cidadãos na mesma faixa etária está detido. O número sobe
para 1 em 48 quando se trata de cabo-verdianos, a comunidade africana
mais expressiva em Portugal: ou seja, 15 vezes mais.
Mais
um dado: se tivermos apenas em conta os homens, que constituem, na
verdade, o grosso da população prisional, concluímos que um em cada 37
cidadãos dos PALOP está preso versus um em cada 367 homens portugueses
(e uma em cada 1071 mulheres dos PALOP versus uma em cada 6732
portuguesas).
Estes
números resultam de um cruzamento feito pelo PÚBLICO a partir de
informação da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP)
relativa a 31 de Dezembro de 2016 e do Censos 2011. Os cálculos
recorrem a uma fórmula usada pelo instituto de pesquisa americano Pew
Research Center, um dos mais conceituados dos Estados Unidos (ver nota
metodológica na infografia).
As
diferenças entre as taxas de encarceramento acentuam-se nos concelhos
onde a percentagem de imigrantes dos PALOP é mais alta, como Amadora ou
Sintra. Na Amadora, uma em cada 49 pessoas dos PALOP está presa,
comparando com um rácio de um em cada 392 cidadãos portugueses. Em
Sintra não é muito diferente: na população dos PALOP, a relação é de um
para 50; entre a comunidade portuguesa, de um para 492.
O
hiato agrava-se se focarmos só a comunidade cabo-verdiana, a segunda
nacionalidade de imigrantes mais representada no país: na Amadora e em
Sintra, um cabo-verdiano tem 19 vezes mais de probabilidade de estar
detido do que um português.
Já
no Porto, onde a população dos PALOP é pouco expressiva, a diferença de
taxas de encarceramento entre portugueses e cidadãos dos PALOP é muito
menor do que no resto do país e do que nos concelhos referidos: fica-se
apenas pelo dobro.
Os
cidadãos de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e
Príncipe representam menos de 1% da população em Portugal.
“Uma diferença abismal”
Estas
estatísticas podem ter várias interpretações, e também ser analisadas
do ponto de vista racial, já que a maioria da população destes países é
negra — por não existirem dados étnico-raciais em Portugal, há
sociólogos que usam a variável imigração dos PALOP como método de
aproximação à questão racial. Os resultados seriam diferentes — e,
acreditam os especialistas contactados pelo PÚBLICO, a desproporção
aumentaria — se houvesse dados sobre portugueses negros, que aqui
aparecem diluídos no grupo de portugueses.
Para
ter uma ideia da expressividade desta informação: comparando com os
Estados Unidos, os afro-americanos têm cinco vezes mais de
probabilidades de estar na prisão, diz o mais recente estudo feito pelo
think tank The Sentencing Project. Ou seja, metade dos valores
registados em Portugal quando se analisa os cidadãos dos PALOP.
O
procurador Alípio Ribeiro, que já esteve na direcção nacional da
Polícia Judiciária, não tem dúvidas: as taxas de encarceramento apuradas
pelo PÚBLICO mostram uma “diferença abismal” entre presos dos PALOP e
portugueses. E confirmam uma intuição que tinha, a de que “há uma
justiça para portugueses e uma justiça para estrangeiros, uma justiça
para brancos e uma justiça para negros”.
O
procurador, também inspector, defende que “não se pode tirar destes
números a conclusão de que os PALOP são mais criminosos”. Pelo
contrário: “O que posso dizer é que o sistema permite isto. Parece-me
que há uma pro-actividade em relação a estes indivíduos.”
A
discriminação racial na justiça traduz-se em outros aspectos, afirma. A
sua percepção é a de que “é preciso menos provas para incriminar um
negro”. Porque “há uma desconfiança inicial em relação ao negro que não
há em relação ao branco”. Em geral, afirma, a justiça é “mais dura em
relação aos negros”.
Pelos
números, prossegue Alípio Ribeiro, também fica claro que há “faixas de
população mais vulneráveis, mais ‘perseguidas’ do ponto de vista
policial e relativamente às quais é possível uma actuação de força que
não será possível em relação a outros”.
E a defesa?
Já
em 2014 um estudo do Observatório da Imigração, Monitorizar a
Integração de Imigrantes em Portugal, mostrava que as taxas de
condenação, nos mesmos tipos de crime, eram mais elevadas para
estrangeiros.
Se
analisarmos a duração de penas, com base nos dados que o PÚBLICO
compilou da Direcção-Geral da Política de Justiça (DGPJ) de 2015, e
pegando em três crimes apenas como exemplo — furto simples e qualificado
e violência doméstica —, os cidadãos africanos estão também em
desvantagem em relação aos portugueses: são o dobro as percentagens de
presos com as penas máximas (de entre 15 a 20 anos e de entre 20 a 25
anos) e metade com as penas mais baixas de entre um a três anos. Ou
seja, 6,8% dos reclusos africanos têm pena máxima contra 3% dos
portugueses. Inversamente, 12,4% têm uma pena de 3 a 6 anos, enquanto
essa percentagem para os portugueses é de 25,3%.
As
discrepâncias também se encontram nas condenações pelos mesmos tipos de
crimes, com clara desvantagem para africanos. As proporções são estas:
há nove vezes mais condenados dos PALOP por roubo e violência do que
portugueses; oito vezes mais por resistência e coacção sobre
funcionário; seis vezes mais por desobediência. Estes dois últimos
crimes implicam interacção com a polícia. “Aqui o anacronismo ainda é
mais visível”, continua Alípio Ribeiro.
Ao
procurador João Rato, da comarca de Aveiro, preocupa a qualidade da
defesa que muitos destes cidadãos não estão a ter. Interroga-se sobre a
capacidade que têm de interpor recurso e se lhes é dada a possibilidade
de cumprirem as penas em liberdade condicional. “Os dados são
impressivos. A sensação que tive quando fiz trabalhos de inspecção nas
comarcas de Lisboa Oeste e Norte foi que, para os mesmos crimes, as
penas eram mais leves para cidadãos portugueses. Parece que há um código
para uns e um código para outros.”
Como
inspector, não se coloca à margem da possibilidade de praticar actos
discriminatórios. Diz, aliás, que a sua obrigação é interpelar os outros
e a si próprio sobre os preconceitos inconscientes, que são os que
“mais o preocupam”, afirma. “O importante é não fugirmos a esta
questão.”
Celso
Manata, que está à frente da DGRSP, recusa a ideia de que no sistema
judicial haja discriminação. “Seria uma injustiça dizê-lo.” Reconhece
que há uma sobre-representação da população negra nos estabelecimentos
prisionais que dirige, não porque tenha números, pois eles não são
recolhidos, mas porque conhece a realidade de perto. Porém, explica-o
com o facto de “as pessoas de raça negra, em muitas circunstâncias,
terem condições sociais, de trabalho, e um enquadramento mais
desfavorável do que a população branca”. Estas “ambiências são mais
propiciadoras a atitudes criminais do que morar no Bairro Azul ou nas
Avenidas Novas” de Lisboa, considera. Ou seja: não se pode ligar a cor
da pele das pessoas ao facto de estarem presas mas a estarem excluídas.
“Há
cadeias, como o Linhó, onde só há praticamente reclusos negros e muitos
são portugueses”, lembra o sociólogo António Pedro Dores, que já fez
várias denúncias de violações de direitos humanos nas prisões. “Toda a
gente percebe que tanto a polícia, como os tribunais e as prisões, fazem
uma distinção entre grupos de pessoas, nomeadamente africanos”.
“Prisão não é hotel”
Numa
sociedade cujos “mecanismos estão montados para vigiarem uma
determinada população”, “é claro que o número de reclusos vai ser mais
expressivo” nessas populações, comenta, por outro lado, o advogado José
Semedo Fernandes. “Quando alguém chega ao 5.º ano e não tem
nacionalidade portuguesa, não lhe dão a residência, não consegue
trabalhar só vê muros e não tem alternativas”, afirma este jurista que
durante anos trabalhou no Centro Nacional de Apoio ao Imigrante (CNAI).
“O sistema judicial e o carcerário são muito mais agressivos com os
cidadãos negros. As pessoas não têm a noção do quanto é. Isso vê-se
também no facto de o cidadão negro, na maioria das vezes, ultrapassar os
dois terços da pena ou cumprir a pena toda.”
Manuel,
nome fictício, não tem dúvidas. Depois de cumprir a sua pena, sabe que
“a população” da sua cor “está em massa nas prisões”.
Com
quase 40 anos, e a viver em Portugal há 17, na linha de Sintra, é um
angolano pai de uma filha de sete anos, portuguesa. Foi Manuel quem se
entregou à polícia por crimes de burla e falsificação. Mas acredita que o
facto de ser negro influenciou o seu percurso: não contou com atenuante
na pena aplicada, de seis anos e sete meses, cumpriu-a praticamente até
ao fim e sem conseguir gozar de qualquer precária, mesmo tendo sido um
“recluso exemplar”.
“Encontramos
o racismo mais puro dentro do sistema prisional”, afirma. “Pedi uma
saída. Sendo recluso primário, com um quarto da pena cumprida, por ser
desta cor não me deram.”
Quando
entram na prisão, os reclusos estrangeiros perdem a autorização de
residência e não a conseguem renovar. “O juiz dizia que não me dava a
precária porque os meus documentos estão caducados. Se quem me privou da
liberdade foi a justiça, a justiça é que tem que ver se eu estou
preparado para a precária, não é o SEF. Onde é que estão os direitos
humanos?”
Os
dados, por isso, não o espantam e mostram que, como ele, muitos não
tiveram acesso a uma boa defesa, permanecem mais tempo encarcerados e
ficam com maiores hipóteses de reincidência. Se em Portugal se defende a
democracia, então ela deveria chegar ao sistema prisional, conclui:
“Prisão não é hotel. É preciso algum sofrimento. Mas um indivíduo também
não pode ser esfolado ou asfixiado.”
Alípio
Ribeiro analisa: “Em todos os países há fenómenos de discriminação
racial nos sistema judicial. Porque não haveria de existir em Portugal?”
Não tem dúvidas: “Há um preconceito racial, que as pessoas não
assumem.” E ele “invade o polícia, o procurador, o cidadão comum”. Por
isso é importante saber se “nós, que trabalhamos neste sector” estamos
preparados para o “ultrapassar”. “Temos estes números [do PÚBLICO] que
são muito significativos e um bom ponto de partida para começarmos a
estudar este fenómeno.”
A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, não quis comentar.
O eterno problema dos dados
Apesar da recomendação da ONU para que o faça,
e de insistência de associações de afrodescendentes, em Portugal não há
recolha oficial de dados étnico-raciais, por isso alguns cientistas
sociais usam dados das populações PALOP. É uma limitação, até pela
associação que assim se cria entre negros e imigrantes, mas também uma
forma de aproximação. O retrato da desigualdade racial só seria feito se
a estes dados conseguíssemos acrescentar os portugueses negros.
Não
deixa de ser curioso que o sistema que não permite a recolha oficial
faça o registo individual sobre a raça, em determinadas instituições
públicas. Basta ler autos da polícia, relatórios médicos de ocorrências
em esquadras para perceber que a etiqueta “indivíduo de raça negra” é
comum. Ao contrário do que quem se opõe às estatísticas étnico-raciais
defende, ter dados ajudaria mais do que estigmatizaria as populações
racializadas, acredita o procurador Alípio Ribeiro. “Porque nos daria
uma percepção mais real da sua situação na sociedade, nomeadamente na
justiça.” E permitiria desenhar políticas de natureza criminal para
estes grupos.
O
facto de não existirem dados étnico-raciais já mostra alguma coisa,
diz, por seu lado, a procuradora Rita Sousa: a negação de uma tendência
ou o desinteresse pelo estudo da realidade das populações negras.
“Parece que há uma intolerância para com estas populações, mas era
necessário fazer um estudo mais amplo.” Mais dados, de mais anos,
comparação entre decisões e factos semelhantes, e cruzamento de outros
factores seriam um passo necessário para trazer mais robustez às
conclusões, diz. “Apesar disso, não nos podemos esquecer que actuamos
com um inconsciente colectivo que é o de um país que foi colonizador.”
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