Decreto-lei de 1941 estipula que o traje de banho das senhoras deve ter “calção justo à perna”. Para os homens “fato inteiro”
FOTO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL DE CASCAIS - COLEÇÃO HOTEL PALÁCIO
Em 1940,
Portugal recebeu milhares de refugiados em fuga de uma Europa que era
mais tolerante nos costumes, mas estava em guerra. As
mulheres estrangeiras fumavam, usavam saias curtas e iam sozinhas paras
os cafés, deixando muitos homens portugueses embasbacados com tanta
modernidade. No ano seguinte, para prevenir alegados
atentados ao pudor nas praias, Salazar legislou sobre o que os fatos de
banho devem esconder
Ditadura e
regulamentação da liberdade no vestir andam muitas vezes de mão dada, e
Portugal não escapou a nenhuma delas. Em maio de 1941, o ministro do
Interior, Mário Pais de Sousa, dois anos mais novo do que António
Salazar e conterrâneo do ditador, decidiu prevenir o aparecimento de
gente com o corpo excessivamente à mostra nas praias nacionais, antes
que os portugueses, mas sobretudo as mulheres, adotassem os trajes de
milhares de refugiados estrangeiros que cruzavam as nossas fronteiras.
É neste
contexto de contacto com novos hábitos e costumes, de mulheres que
fumavam e se sentavam sozinhas nas esplanadas, que o Governo decreta que
“nos termos da Constituição, pertence ao Estado zelar pela moralidade
pública e tomar todas as providências no sentido de evitar a corrupção
dos costumes. Factos ocorridos durante a última época balnear mostraram a
necessidade de se estabelecerem (...) as normas adequadas à salvaguarda
daquele mínimo de condições de decência que as conceções morais e mesmo
estéticas dos povos civilizados ainda, felizmente, não dispensam”.
O decreto diz
que só será permitido “usar e vender fatos de banho que não contrariem
as condições mínimas oficialmente fixadas e tornadas públicas” que o
“uso dos fatos de banho é restrito às praias, piscinas e outros locais
destinados à prática de natação, sendo rigorosamente proibido
ostentá-los fora desses lugares”. O legislador acrescentou estar atento
“às exigências do desporto de natação”.
A lei não
mencionava as características dos fatos de banho − que serão descritas
em editais posteriormente afixados nas zonas balneares... e que aí
permaneceram durante largas décadas, sobrevivendo alguns, para amostra,
depois do 25 de Abril de 1974, quando já tinham prescrito pelo uso.
Lei visava homens e mulheres
Ao contrário da
tentativa de regulamentação que o governo do Presidente da França,
François Hollande, tentou impor recentemente − e que foi vetada pelo
tribunal − o decreto-lei do ministro Pais de Sousa impunha limitações de
traje de banho a homens e mulheres: os homens poderiam mostrar as
costas até à cintura, as mulheres só até 10 centímetros acima da
cintura. O fato de banho delas tinha de ter um saiote que cobrisse em
pelo menos um centímetro a parte de baixo do calção justo à perna,
enquanto o calção deles teria de ter um comprimento de perna mínimo de
dois centímetros, e tapar a barriga, podendo ser inteiro ou de duas
peças, conforme se lê no edital de julho de 1952, da capitania de
Cascais, que reproduzimos.
Apesar de os
homens serem visados pelas normas do traje de banho, e de a fiscalização
ter sido efetiva − com recurso a fita métrica − a repressão sobre a
forma de vestir das mulheres − ou pelo menos uma fortíssima pressão
social − era uma das maiores preocupações da Mocidade Portuguesa
Feminina (MFP), que em conjunto com a OMEN [Obra das Mães pela Educação
Nacional], iniciara a campanha pela “moralização das praias” em 1936.
A historiadora
Irene Flunser Pimentel, no livro “Organizações Femininas do Estado
Novo”, lembra que a este caldo de MFP e OMEN “se juntou a imprensa
católica, que acusou a ‘judiaria’ e o protestantismo pela difusão da
‘pornografia, nudismo e satã sensualidade’. A recorrência dos artigos
sobre o ‘pudor’ nas praias e expressões para afugentar as troças que
recaíam sobre as filiadas que usavam o fato de banho regulamentar da
Mocidade são reveladores de que a austeridade e o moralismo da MPF não
encontravam, no entanto, grande adesão entre as jovens das classes média
e alta. Num artigo sobre a praia do Estoril, a articulista elogiou o
fato de banho da MPF e apelou às leitoras para abandonarem o ‘maillot
feio e impróprio’ ’’, acrescenta Pimentel, transcrevendo o apelo da
articulista do artigo publicado no Boletim da MPF de julho de 1939:
“Tende
personalidade e coragem para afirmar essa personalidade não vos
acanhando de aparecer corretas, mas sabendo dar alegremente o exemplo. A
vossa influência pelo exemplo pode ser enorme. [...] Raparigas da
Mocidade, o vosso dever é reagir contra tudo o que é mau. Se vos
criticarem, que importa? [...] Vesti com orgulho o fato de banho da
Mocidade: ele fala por vós e diz aos que vos veem quem vós sois:
verdadeiras raparigas alegres e saudáveis – mas puras”.
Por oposição à
campanha de propaganda da MPF, em setembro de 1940, o “Diário de
Notícias” colocou na primeira página uma foto com duas mulheres em fato
de banho e escrevia: “Portugal é a praia ocidental da Europa, onde se
falam agora todas as línguas e se encontram mulheres de todo o tipo de
beleza”.
A chegada das
refugiadas estrangeiras abanou e arejou um Portugal cinzento e fechado
sobre si próprio, e pôs (alguns) os homens portugueses em alvoroço e a
hierarquia religiosa em alerta.
No seu livro
“Recordações de um Caminheiro” − citado por Irene Pimentel em “Judeus em
Portugal durante a II Guerra Mundial” − o escritor, dramaturgo e
advogado antifascista Alexandre Babo recorda as "esplanadas da Avenida
ou do Rossio” onde se viam “franceses, belgas, holandeses, judeus dos
mais remotos lugares”.
O autor também
se refere a uma das pastelarias mais famosas da Lisboa de então: “À
Suíça, no Rossio, já chamavam o ‘Bompernasse’, [numa alusão às pernas
das mulheres que passeavam pela zona parisiense de Montparnasse]”,
porque por ali “predominavam as mulheres (...) fumando em público. (...)
Tudo isto era murro na boca do estômago do provincianismo nacional.
(...) Aquela gente aparentava outros hábitos, mais livres, mais naturais
e abertos (...) sem olharem (elas) de soslaio os machos, sentadas nos
cafés, nas cervejarias, nos passeios públicos, o que até então era
apanágio exclusivo dos homens e de algumas poucas mulheres.”
Rossio era conhecido por ‘Bompernasse’
À pastelaria
“Suíça”, no Rossio, já chamavam o ‘Bompernasse’, [numa alusão às pernas
das mulheres que passeavam pela zona parisiense de Montparnasse]”,
porque por ali “predominavam as mulheres (...) fumando em público
Também a
escritora e jornalista francesa Suzanne Chantal − que mais tarde se
casaria com um português − escreveria em 1940 no “Diário de Notícias”,
que “nunca tinha visto tantos homens juntos ao mesmo tempo numa praça
pública e nem uma única mulher” e que compreendia a “razão por que
Portugal” tinha “um nome masculino”. No seu romance “Deus não Dorme”,
Chantal descreve o escândalo que os hábitos das estrangeiras provocaram
entre algumas portuguesas que, por vezes, mostravam incompreensão pela
situação dos refugiados: “Querem que a gente tenha pena deles. Passam
ali os dias inteiros sem fazer nada. Estas estrangeiras! (...)
Passeiam-se sem meias, sem chapéu. Trazem bâton nos lábios e não têm
camisa. Uma vergonha! Um mau exemplo para as nossas filhas”.
No que toca às
sanções aplicadas às pessoas que desafiaram a lei dos fatos de banho,
pouco depois de entrar em vigor, o matutino “O Século” de 13 de outubro
de 1941 noticia que seriam julgados nesse dia na polícia marítima
“alguns banhistas, principalmente senhoras, que transgrediram o
regulamento” e que tinham sido “autuados” na véspera nas praias dos
arredores de Lisboa.
Se fosse hoje... multa ultrapassava os 2000 euros
No livro
“Judeus em Portugal”, a historiadora Irene Pimentel conta que um
diplomata jugoslavo “foi abordado por dois polícias à civil, por estar
em tronco nu, na areia, e intimado a ir à polícia, no Terreiro do Paço,
para ser multado em 3000$00, por ofensa ao regulamento do vestuário para
banhos de mar. Acabou por ser perdoado, mas aconselhado a vestir-se
‘sobretudo quando saísse da água’ ”. O Expresso fez as contas e concluiu
que 3000$00 em 1941 equivalem a 2028 euros atuais.
Refira-se
ainda, a título de curiosidade, que de acordo com a informação
disponível no Diário da República, o decreto-lei de 1941 não foi
alterado nem revogado. Interpelada a Autoridade Marítima Nacional,
informa que “se ainda não foi revogado expressamente, pode-se considerar
a sua revogação tácita, atendendo ao facto de hoje, pelo menos em
Portugal, as pessoas trajarem biquínis ou fatos de banho, ou calções de
banho, uns mais curtos, outros mais longos (para os nudistas existem
praias especificas), sendo que não existe qualquer punição pelo facto de
se usar biquínis reduzidos, ou fazer-se topless”.
O Estado Novo
sempre tentou controlar a exposição do corpo, nomeadamente nos cartazes
de cinema, que “pintavam as costas” desnudas das atrizes de Hollywood, e
“retocavam os decotes”, como lembra o historiador António Costa Pinto:
“Se há algo que caracteriza o regime de Salazar é ter regulamentado e
aplicado as visões mais conservadoras da igreja católica sobre a moral e
os bons costumes”.
Acresce dizer,
que os refugiados que passaram por Portugal só passavam dias inteiros
sem aparentemente fazerem nada porque estavam praticamente impedidos de
trabalhar, e limitados no espaço geográfico em que se podiam movimentar.
Na verdade, não eram turistas mas pessoas em fuga em busca de um porto
seguro que os salvasse da guerra e perseguições nazis.
Fonte: http://expresso.sapo.pt
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