Escolhida por
Amílcar Cabral para dirigir, em Conacri, a escola que preparava os
filhos dos combatentes para a independência, Maria da Luz "Lilica" Boal
agradece hoje "a sorte" de ter participado na luta de libertação.
Maria da Luz
"Lilica" Boal nasceu em 1934 no Tarrafal de Santiago, dois anos antes de
o Governo português criar a Colónia Penal naquele concelho
cabo-verdiano para encarcerar os presos políticos que se opunham ao
regime.
Foi durante os
tempos de aluna universitária na capital portuguesa, Lisboa, onde
frequentava a Casa dos Estudantes do Império, que passou a
identificar-se cada vez mais com os ideais da libertação.
Em 1961, ano
em que começou o conflito armado em Angola, um grupo de estudantes
africanos das então colónias portuguesas fugiu de Portugal, rumo à luta
pela independência. Entre eles estava Lilica Boal, então com 26 anos e
mãe de uma bebé de 17 meses.
Depois de
passar pelo Gana e pelo Senegal, onde tratava os feridos de guerra que
aí chegavam por Ziguinchor, na fronteira, Lilica Boal assumiu a direção
da Escola-Piloto do Partido Africano para a Independência da Guiné e
Cabo Verde (PAIGC), inaugurada em 1965, em Conacri, para acolher os
filhos combatentes e os órfãos de guerra. A professora era também
responsável pela elaboração dos manuais escolares.
DW
África: Em junho de 1961, ano do início do conflito armado em Angola,
integrou um grupo de estudantes africanos que fugiu de Portugal para
continuar a luta pela independência noutros destinos. Recorda-se dessa
travessia?
Lilica Boal (LB): Recordo-me
muito bem. Nessa altura estava a preparar a minha tese para a
licenciatura em História e Filosofia. Frequentava muito a Casa dos
Estudantes do Império e, a partir daí, organizou-se essa saída de um
grupo de estudantes dos diferentes países, mas mais de Angola, que se
queriam juntar aos movimentos de libertação.
Saímos de
Lisboa para o Porto e, no dia seguinte, muito cedo, partimos em direção à
fronteira espanhola. Mas, em Espanha, a polícia já estava à nossa
espera. Fomos chamados para a polícia e cada um ia fazendo a sua
declaração. Entretanto, terá havido uma intervenção da Igreja
Protestante, porque depois ficámos instalados numa igreja do Conselho
Ecuménico das Igrejas. Portugal já tinha pedido a Espanha para nos
mandar de volta. [Mas] fomos libertados em Espanha e seguimos para
Paris.
Entretanto,
houve comunicação com outros países de África, com o Gana. E aí [o
Presidente] Kwame Nkrumah prontificou-se a mandar um avião para nos ir
buscar à Alemanha. Chegados ao Gana fomos alojados num liceu. Era um
grupo de cerca de 50 jovens estudantes. Tivemos oportunidade de
contactar vários dirigentes dos outros países [como os angolanos Viriato
Cruz e Lúcio Lara]. Foi aí que eu me encontrei, pela primeira vez, com
Amílcar Cabral que, por acaso, conhecia muito bem a minha família do
Tarrafal.
DW África: Como foi esse primeiro encontro com Amílcar Cabral?
LB: Foi
muito bom. Ele era uma pessoa de uma simplicidade extraordinária, um
grande pedagogo. Falando com ele uma pessoa sentia-se muito mais livre e
convicta daquilo que poderíamos fazer. Ele perguntava a cada um o que é
que queria fazer a partir daí. Eu estava casada com um estudante
angolano de medicina, o Manuel Boal, que foi no grupo de angolanos que
foram para a frente no Congo-Kinshasa, para a criação de uma frente de
saúde para apoiar os feridos de guerra de Angola.
Eu tinha um
bebé de 17 meses. Naquele contexto, não quisemos trazer a bebé. Não
sabíamos para onde íamos, o que é que ia acontecer. Foi realmente o
momento mais duro, ter que separar-me da bebé. Então mandei a minha
filha para a minha mãe, que vivia no Tarrafal, e nós fomos.
Do Gana fomos
para Conacri, onde estava a base do PAIGC. E de lá eu preferi ir para o
Senegal para poder ter contacto com a família. Fiquei integrada no
PAIGC, a trabalhar no "bureau" do partido.
Lilica Boal fala com saudades dos tempos em que era diretora da Escola-Piloto em Conacri
DW África: E no Senegal trabalhava na mobilização de cabo-verdianos para o PAIGC?
LB: Sim.
Muitas vezes, o Pedro Pires e eu saíamos naqueles autocarros para
contactar a comunidade cabo-verdiana. Não falávamos com muitas pessoas,
mas, mesmo assim, discutíamos a situação do país naquele momento e
aquela onda de independências que estávamos a viver - no Senegal, na
Guiné-Conacri, no Gana, na Costa do Marfim. Discutíamos a possibilidade
de também nós conseguirmos lutar para conseguir a independência de Cabo
Verde.
Mas, no
"bureau", eu também trabalhava na administração de finanças e contactava
com os feridos de guerra que vinham do norte da Guiné-Bissau, através
de Ziguinchor. Tínhamos um lar dos combatentes, onde eles ficavam
alojados. E, estando aí, em contacto com a minha filha - porque mais
tarde a minha mãe conseguiu ir até ao Senegal levar-ma, mas nessa altura
ela já tinha cinco anos – eu fazia esse trabalho de educação no Senegal
e em Conacri.
A
Escola-Piloto foi criada depois do Congresso de Cassacá [em 1964]. No
entanto, como eu estava preocupada com o problema da minha filha, só em
1969 assumi a direção da Escola-Piloto em Conacri.
DW
África: Que era uma escola fundada por Amílcar Cabral a pensar na
formação de quadros que viriam a conduzir os destinos da Guiné-Bissau e
de Cabo Verde quando estes fossem independentes.
Lilica Boal recorda Amílcar Cabral como "um grande pedagogo"
LB: Uma
das grandes decisões desse congresso foi realmente a criação de uma
escola que pudesse receber os órfãos de guerra e os filhos dos
combatentes com o objetivo de dar uma formação já virada para a criação
do tal "homem novo" de que falava Amílcar Cabral.
DW África: E o que era mais importante ensinar aos alunos?
LB:
Ensinávamos Português e depois introduzimos também o Francês e o
Inglês. Íamos até à sexta classe, mas os alunos mais avançados tiveram
realmente muitas facilidades quando foram estudar para o estrangeiro.
Porque nós conseguimos bolsas para a formação deles a partir da sexta
classe. Mandámos alunos para Cuba, para a então União Soviética, para a
Alemanha Democrática, para a Checoslováquia. E dávamos também História, a
nossa História. Os manuais que nós elaborávamos eram virados para a
Geografia e a História da Guiné e Cabo Verde.
DW
África: Em apenas dez anos, o PAIGC formou mais quadros do que o regime
colonial em 500 anos. A "arma da teoria" era tão ou mais importante que a
luta armada?
LB: Sim,
a preocupação de Cabral era essa. Ele dizia-me mesmo: "Se eu pudesse,
fazia uma luta só com livros, sem armas." Era a melhor maneira de
preparar os quadros para o futuro. E, dentro da escola, havia realmente
uma relação estreita entre professores e alunos, de respeito mútuo. Isso
continuou até hoje. Quando encontro um antigo aluno da Escola-Piloto é
sempre um momento gratificante.
DW África: As zonas libertadas foram visitadas por vários grupos, por exemplo de jovens. Como foram as reações a esta sociedade sui generis, a este modelo único que encontraram na Guiné?
LB: Ficavam
encantadas. Nas zonas libertadas, a comunidade era unida e recebia bem
os visitantes. As pessoas eram de uma gentileza fora de série. Quando eu
me levantava de manhã já havia um balde de água ao sol para aquecer
para eu não tomar banho com água fria. Foram coisas que me marcaram.
Lilica Boal durante a visita de uma delegação soviética à Escola-Piloto do PAIGC em Conacri, em 1965
DW África: Há algum episódio durante a luta de libertação nacional que a tenha marcado em especial?
LB:
Há um que conto sempre porque me marcou. Naquela saída de Paris para a
Alemanha íamos em autocarros. E nós saímos de Portugal apenas com um
saquinho de cinco quilos. Na altura, como era uma saída clandestina, não
tínhamos a hora exata da saída de autocarro. Então, eu saí para ver
umas montras. Quando voltei, os camaradas já estavam no autocarro. E eu
procuro o meu saco. "Onde é que está o meu saco?" Disseram-me: "O Pedro
[Pires] é que levou". Porque o camarada Pires, pensando que uma senhora
precisa mais de um saco do que um homem, deixou o saco dele e levou o
meu. Para mim, isso é a prova do altruísmo do Pires que me marcou.
DW
África: E como foi o dia em que soube da Revolução dos Cravos em
Portugal, a 25 de Abril de 1974? Como é que recebeu essa notícia?
LB:
Foi uma coisa que parecia pólvora. Quando soubemos dessa revolução, eu
entrava numa sala de aula e dizia: "revolução em Portugal!" Era como se
tivéssemos acendido um fósforo. Toda a sala se levantava! Passei de
turma em turma a informar dessa revolução. Eu sinceramente não estava à
espera daquilo naquele momento e certamente os alunos também não.
Isso foi uma
das coisas que me marcou. Outra foi quando, após esse período, os
militares começaram a deitar abaixo aviões portugueses. Cada vez que
tínhamos informação de aviões que tinham ido abaixo, eu ia também às
salas de aula e os alunos pintavam logo um avião e uma maca com feridos
de guerra a serem transportados.
Outro momento
que me marcou foi quando a Titina Silá [guerrilheira do PAIGC], que
vinha de Ziguinchor para vir assistir às cerimónias fúnebres de Amílcar
Cabral, morreu ao atravessar o rio. Quando me contaram que a Titina
tinha morrido eu não queria acreditar.
DW África: E quase 40 anos depois da proclamação da independência de Cabo Verde a luta valeu a pena?
LB: Se
valeu! Porque eu que conheci um Cabo Verde em que eu, para fazer o
liceu, tive de ir a São Vicente, porque não havia um único liceu em
Santiago. Agora eu vou ao Tarrafal e vejo o liceu com todas as condições
que tem agora, vejo os jovens frequentando o liceu, com uniforme, com
uma cantina.
Tive muita
sorte. Primeiro, pela oportunidade de ter participado nessa caminhada.
E, segundo, por ter chegado ao fim com vida para ver o que estou a ver
agora. Valeu a pena.
Fonte: DW África
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