A historiadora
portuguesa Irene Flunser Pimentel defende o esclarecimento dos tabus em
torno dos crimes cometidos por Portugal nos vários cenários da guerra
colonial em África.
A historiadora
portuguesa Irene Flunser Pimentel exorta a opinião pública dos países
africanos a debruçar-se sobre a memória para o conhecimento da história
comum. A investigadora considera que já não é tempo de fazer justiça em
tribunal pelos crimes cometidos no passado pelo regime colonial
português.
Irene Pimentel tem vindo a aprofundar o seu trabalho com recurso aos documentos depositados na Torre do Tombo, em Lisboa, e lançou
este sábado a sua mais recente obra - "O Caso da PIDE/DGS”-, através da
qual questiona se "foram julgados os principais agentes da Ditadura
portuguesa”.
O que fazer com os agentes da ditadura?
Portugal viveu
um momento de rotura relativamente ao regime que vigorou até ao Estado
Novo, com o eclodir do 25 de abril de 1974 – um golpe de Estado que se
transformou num processo revolucionário.
Entretanto, no
seio da opinião pública, começou a ser discutido o que é que iria ser
feito com os elementos do antigo regime. "Seriam julgados?”, questiona a
historiadora portuguesa.
Não havia
muitos modelos a seguir. O único era, praticamente, o caso dos
julgamentos de Nuremberga: entre 1945 e 1946, o Tribunal Militar
Internacional reuniu-se para julgar os dirigentes nazis alemães após a
Segunda Guerra Mundial.
Livro da historiadora portuguesa Irene Flunser Pimentel
Nesse sentido,
houve uma discussão que motivou a criação de uma Comissão de Extinção da
PIDE/DGS – a polícia política portuguesa que se transformou no
paradigma do antigo regime. Por exemplo, Marcelo Caetano e Américo Tomás
– duas figuras emblemáticas do Estado Novo – foram enviados pelo
Movimento das Forças Armadas (MFA) para fora de Portugal, mais
precisamente para o exílio no Brasil.
Inicialmente,
os ministros que tutelavam a polícia política portuguesa também não
foram presos. Isso só veio a acontecer mais tarde, por causa da opinião
pública. E os elementos da PIDE, que foram os responsáveis pelos quatro
mortos e vários feridos no 25 de abril, também por pressão da opinião
pública, começaram a ter medo e entregaram-se às Forças Armadas.
A Comissão de
Extinção da PIDE/DGS não tinha apenas o objetivo de acabar com a polícia
política, imediatamente extinta em Portugal. O interessante, como
sublinha a especialista em História Contemporrânea Irene Flunser
Pimentel, é que isso não aconteceu nas então colónias portuguesas, em
África, que viviam cenários de guerra. O general Francisco da Costa
Gomes disse mesmo ao MFA que não era conveniente o desaparecimento da
PIDE nas colónias, uma vez que representava o orgão de informação da
tropa portuguesa enquanto houvesse guerra.
A reação das colónias
A ideia era que
a polícia política em África fosse transformada em Serviço de
Informação Militar (SIM). "Claro está que a tendência era para se
assinar depois uma [cláusula de] paz», precisou a historiadora em
entrevista à DW África, momentos antes da apresentação do seu novo livro
pelos académicos Rui Bebiano e Enzo Traverso.
"Angola,
Guiné-Bissau e Moçambique, as três colónias que estavam em guerra,
reagiram de forma muito diferente à continuação da polícia política
portuguesa”, explica Irene Pimentel.
A partir da sua
pesquisa, a investigadora considera que Angola foi, talvez, o país que
reagiu positivamente à transformação da PIDE/DGS em SIM. No entanto, por
pouco tempo, enquanto a guerra não terminasse, para dar lugar à
assinatura dos acordos de paz.
Tarrafal, na Ilha de Santiago, Cabo Verde
Irene Pimentel
dá conta que, curiosamente, tal nunca aconteceu em Moçambique. Houve um
processo diferente, que teve a ver também com a tentativa de uma parte
da população branca de promover uma independência para brancos. Mas, o
que é certo, acrescenta, é que a PIDE não continuou, tal como acontecera na Guiné-Bissau.
A historiadora
portuguesa destaca ainda na sua obra o processo de libertação dos presos
políticos nas três colónias, nomeadamente nos campos de Machava
(Moçambique), das prisões de Tarrafal, na Ilha de Santiago (Cabo Verde) e
nas Ilhas das Galinhas (Guiné-Bissau), além de um campo de detenção que havia em Angola.
A autora
adianta que em Moçambique chegou a ter lugar um processo de justiça
política, relativamente aos elementos do antigo regime colonial, quando
Samora Machel - então líder da FRELIMO e, mais tarde, primeiro
Presidente da República do pós independência - fez a sessão de
apresentação dos elementos que tinham pertencido à PIDE e à União
Nacional. "Essas pessoas pediram publicamente desculpa às vítimas que
estavam na plateia”, conta a historiadora, revelando tratar-se de um
processo "muito desconhecido” que carece de mais estudos para se
perceber a sua continuação.
Teoricamente,
"com aquele pedido de desculpa, a situação ficava arrumada”, admite.
Seria, antes de ter existido na África do Sul, uma espécie de Comissão
de Verdade, mas ainda muito marcada pelo período de luta anti-colonial
sucedido pela proclamação de independência. "Acho que os historiadores
moçambicanos têm aí muito por onde pegar”, sugere Irene Pimentel.
Uma espécie de amnistia
Voltando a
Portugal, a escritora levanta algumas questões: houve um processo de
justiça política? Os elementos da PIDE/DGS, por exemplo, foram julgados?
As pessoas dirão que não. "Mas a história não é bem assim”, esclarece.
Sede da PIDE durante o Estado Novo, em Lisboa
Muitos
elementos da polícia política foram presos. Outros entregaram-se. Houve
um processo instruído pela Comissão de Extinção da PIDE/DGS e depois
foram levados a tribunal pelos crimes cometidos em Portugal. "Só que
quando foram levados para serem julgados em tribunal militar, em 1976 –
dois anos depois do 25 de abril – já estavam quase todos soltos enquanto
aguardavam julgamento”, explica Irene Pimentel.
Depois do 25 de
novembro de 1975, algumas leis acabaram por permitir a libertação dos
elementos da PIDE. "Foram rigorosamente sentenciados, quase todos, à
pena que já tinham sofrido em prisão preventiva”, frisa a historiadora.
O golpe do 25
de abril foi feito por militares, que tinham estado em comissões de
serviço nas colónias em guerra. Irene Pimentel precisa que há uma
primeira lei, a lei nº 8 de 1975, que criminalizava os elementos da
PIDE, estabelecendo até as penas para os diretores, agentes, inspetores
superiores e informadores. E, com o 25 de novembro, a situação altera-se
e a referida lei é esvaziada do seu conteúdo por outras duas leis, que
contemplam atenuantes.
Ironicamente,
exemplifica a investigadora, se um determinado elemento da PIDE tivesse
feito uma comissão em África de apoio às Forças Armadas portuguesas isso
era considerado como uma das atenuantes. "Ora, isso é uma amnistia para
os crimes que foram cometidos em África”, sustenta.
Em África,
Irene Pimentel lembra, por exemplo, os massacres de Wiriyamu,
Pidjiguiti, Mueda, entre outros, perpetrados pelas tropas portuguesas
com o envolvimento da polícia política, que a História de Portugal
tentou esquecer.
Confrontada
pela DW África sobre a questão do esquecimento, a historiadora recorda
os vários militares que tutelaram a Comissão de Extinção da PIDE – o
último deles, um dos mais importantes, foi Sousa e Castro –, aos quais
se colocava a pergunta sobre as razões da impunidade dos que praticaram
massacres nas colónias contrariamente ao que aconteceu em Portugal.
A
vila de Mueda, em Cabo Delgado, em Moçambique, foi palco de um massacre
em 1960, quando o exército colonial português matou manifestantes que
protestavam pacificamente pela independência
Na altura,
entre 1976 e 1977 – ainda havia o Conselho da Revolução –, Sousa e
Castro respondeu: "isso é com os militares”. Ou seja, diz Irene
Pimentel, eram os militares que tinham de decidir o que devia acontecer:
"se vai haver ou não justiça relativamente aos que tivessem cometido
massacres em África”.
Passados mais
de 40 anos depois das independências nos PALOP, ninguém pagou pelos
crimes. "Não houve um processo de justiça política”, afirma. É como se
os seus autores "tivessem sido amnistiados”.
Tabu ainda latente
Segundo a
escritora, a própria opinião pública – mas sobretudo os historiadores –
nos países africanos afetados pela guerra colonial, deveriam primeiro
investigar e estudar o que é que aconteceu e só depois decidir se ainda
deve haver um processo de justiça política, uma vez que já se passaram
muitos anos. Ou, como igualmente defende Irene Pimentel, se, unicamente,
a memória é suficiente para guardar o que aconteceu.
A investigadora
conclui que, mais de 40 anos depois do 25 de abril em Portugal, já não é
tempo de fazer justiça em tribunal. Mas, sugere, "é o tempo da memória e
da História atuarem. A História, trazendo conhecimento, e a memória
mantendo esse mesmo conhecimento”.
A historidadora
concorda com a ideia da criação de uma Comissão de Verdade, englobando
os países africanos que sofreram a guerra colonial. "Mesmo aqui, em
Portugal, as vítimas de tortura ainda não foram ressarcidas”.
Com o 25 de
abril, refere Irene Flunser Pimentel, o que se pensou foi construir
rapidamente um novo país, um novo regime e uma democracia, sem se ter
debruçado sobre estas questões.
"Muitas pessoas
não fizeram o luto sobre o sofrimento que tinham tido antes do 25 de
abril de 1974. E, no caso das colónias, ainda mais”, sublinha. "Isso
será muito interessante”, porque os tabus sobre questões [à volta] da
colonização portuguesa, incluindo o racismo, ainda estão latentes.
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